#6 Lúcidas | vamos trocar rituais? o resgate de práticas que estreitam amizades
Aprender algo juntas, jogar jogos, ensaiar para o Carnaval, viajar, sair pra dançar. Mandar fotos de looks do provador. Isso tudo vai criando memórias, intimidade
Em 2019, pedi a duas amigas que experimentassem comigo uma prática que uma delas disse fazer bem em momentos difíceis da vida: todo dia, cada uma escreveria 10 coisas boas que aconteceram e enviaria para as outras. Os efeitos da gratidão para o nosso bem-estar têm sido cada vez mais comprovados, e colocar um olhar atento às coisas boas do dia foi revolucionário em vários aspectos.
Como é uma lista de 10 itens, todo dia, provamos na prática o poder das “pequenas coisas boas” da vida. Não tem 10 coisas boas óbvias (um nenê nascendo, um trabalho aprovado, um novo amor começando, alguém querido curado de uma doença, um show, uma viagem, etc etc) todo dia. Então a gente se pega prestando atenção e colocando na lista coisas como: sentar 5 minutos pra pegar um sol, a reunião chata que foi cancelada, o filho que pegou no sono cedo, o feijão que saiu no ponto perfeito, a tacinha de vinho vendo série no fim do dia. Com o ritual de escrever e enviar todo dia, essas coisas nos fazem bem várias vezes: quando acontecem, quando prestamos atenção nelas, quando registramos, quando enviamos pras amigas e quando lemos o que as amigas que nos enviaram. São vários miniefeitos positivos ao longo do dia que, somados, ajudam a mudar perspectiva e segurar a barra. No final do ano, exportei as conversas pra uma planilha e criei infográficos com insights (o último você não vai acreditar).
Mas essa news não é sobre eu ser nerd, nem sobre gratidão. É sobre eu ter passado um ano fazendo um ritual com essas mulheres que eu já amava, mas com quem não falava frequentemente ou chamava pra contar quando algo importante me acontecia. E, no final do período em que fizemos o ritual, considerava minhas amigas íntimas.
Até hoje pensamos uma nas outras e contamos quando uma coisa boa acontece, nos acompanhamos mais de perto e fazemos planos de nos encontrar (cada uma mora num lugar). A gente não inventou de fazer esse ritual pra ficar mais amigas. Mas, pra nossa felicidade, esse foi um dos efeitos colaterais.
Lembrei disso quando eu, Jé, Briza e Egnalda, as sócias que co-fundaram Lúcidas comigo, estávamos conversando sobre o que faríamos de especial para o dia do amigo (20 ou 30 de julho, dependendo da fonte). A partir de uma observação sobre o que rolou na nossa primeira experiência presencial, em Salvador no início do mês, decidimos falar da importância dos rituais. Em Salvador, fizemos dois rituais que tiveram um grande impacto e que vocês também podem testar com as amigas:
Apresente a sua amiga (e observe a reação)
Em vez de cada convidada se apresentar, elas apresentavam a amiga com quem foram para o encontro (o convite foi para duplas). O objetivo era pensar sobre como muitas vezes somos mais amorosas e generosas falando de uma amiga do que da gente mesma. Isso é verdade, mas o que achamos mais incrível é que mesmo amigas de anos, que sabem muito bem a importância que têm uma pra outra, nunca tinham parado pra falar assim, descrevendo como se enxergam.Sugestão de ritual: declare a intenção de criar esse momento com um grupo de amigas, marque hora e local (pode ser presencial ou zoom). Setar o espírito é importante. Em duplas ou em uma corrente, cada uma apresenta uma amiga como se o grupo não a conhecesse. Falem como se vêem, o que admiram uma na outra, o que ela faz de interessante, o que essa amizade mudou em vocês.
Variações: a cada reunião, troquem as duplas ou a ordem, façam rodadas temáticas (sobre qualidades que a amiga não enxerga, coisas esquisitas, histórias emblemáticas, momentos singelos de cuidado que uma proporcionou à outra).
Celebre a existência da sua amiga sem você
Depois de uma fala arrebatadora, a escritora Cris Lisbôa pediu que as convidadas escrevessem bilhetes de amor para suas amigas, mas com um detalhe: a autora não poderia se colocar no texto. O desafio era celebrar a existência de uma amiga não pela diferença que ela faz na nossa vida, mas por tudo de incrível que ela é, mesmo quando não está com a gente. Esse é um exercício poderoso para quem tem um pouco de dificuldade de dividir amiga ou encara a amizade como uma troca (o que não é errado, mas é legal ter essa outra perspectiva).
Sugestão de ritual: convide uma amiga para testar essa prática com você com uma periodicidade definida (combinem uma vez por semana, uma vez por mês, sempre no aniversário, o que fizer sentido). É importante fazer o convite e combinar alguns contornos, a periodicidade, se será online ou papel, se vai ter tema ou livre. Pode ter uma data final também. Tirem um tempinho pra pensar, escrever e enviar palavras de amor uma pra outra e observem o que acontece ao longo do tempo.
Em algumas entrevistas que estou fazendo dentro do pilar investigação de Lúcidas, mulheres inspiradoras como Jacira Doce, Denice Santiago e Michelle Xavier (que eu apresentei aqui na última news) trouxeram espontaneamente a importância de termos rituais com as amigas para a manutenção e estreitamento dos vínculos. Jacira gosta de fazer jantares e programar viagens, mas também sugeriu colocar na agenda uma ligação semanal pra uma amiga, fazer disso um hábito. A boa e velha mensagem de bom dia no Whatsapp virou um ritual de Denice com um amigo que se sentia um pouco de lado. “Ele me disse: amizade é uma via de mão dupla, só ele ligava. Amei a voadora. Agora todo dia tiro um tempinho pra lembrá-lo de o quanto amo a nossa amizade."
Ganhei um sarau de poesia de um grupo de amigas como presente de casamento e foi uma das coisas mais lindas da vida. Fiquei pensando que poderíamos fazer disso um ritual. Aprender algo juntas, jogar jogos, ensaiar para o Carnaval, viajar, sair pra dançar. Mandar fotos de looks do provador. Organizar o Natal das amigas, isso tudo vai criando memórias, intimidade, o conforto de que vamos estar juntas em algum momento. Minha avó reuniu um grupo de amigas pra tomar chá todos os meses por décadas .
Nossa proposta para o dia do amigo (que vai virar Dia das Amigas em Lúcidas) é promover a criação coletiva de um “banco de rituais” que a gente possa sugerir umas pras outras e ir experimentando o que fizer sentido. Tem alguma ideia? Conta pra gente nesse formulário que ritual você tem ou gostaria de tentar com as suas amigas. Vamos compilar tudo e dividir com a comunidade.
Nem todo ritual precisa envolver velas e meditação (mas se quiser pode), mas a gente foi levada a acreditar que ritualizar é algo a ver com bruxaria, perda de tempo, fuga ou uma vida fora da casinha. Mas eles são exatamente uma casa. Um “sentir-se em casa no tempo”. Essa ideia não é minha, é do filósofo coreano Byung-Chul Han, no livro O desaparecimento dos rituais (2021). Também vamos falar mais desse ensaio nos próximos dias, mas deixo aqui esse trecho de um artigo de Gilmar Montargil:
O ritual tem como características reunir as pessoas e assim possibilitar encases, comunidades, alianças. No entanto, para Han (2021), um dos motivos do esvaziamento do ritual enquanto conceito é justamente a demonização da palavra “ritual”, como se a sociedade repelisse as repetições, as formas, as estruturalidades. (…) Para o autor, essa carga “coletiva” do ritual vai desaparecendo, dando como exemplo as séries e o nosso ato de “maratonar” episódios e produções inteiras. Para Han a percepção serial tomou o lugar da percepção simbólica, de modo que vivemos de uma forma extensiva, apressada, seriada ao invés de entregues a momentos e experiências intensivas – que precisam de tempo, intensidade, o esforço da atenção. Trocamos, portanto, a repetição por uma caça sem-fim do novo.
“Ritual é a rotina com significado” - a definição vem de um oráculo do Instituto Amuta, criado pela designer de conexões Marcelle Xavier. Marcelle falou na última news sobre Convites, e eu disse que o papo tinha rendido muito mais. Ela me despertou para a importância dos rituais em uma aula da formação em Design de Conexões. Com a palavra, Marcelle:
“São as experiências e rituais que vivenciamos em comunidade que dão ritmo e significado à convivência partilhada. Na ausência deles, as relações vão perdendo sentido ou nem mesmo conseguem se firmar a ponto de criar vínculos significativos."
Como essa ideia bate pra você? Tem algum ritual que você faz com as amigas? Divide com a gente? Essa conversa tá só começando.
Um beijo,
Lari Magrisso
Fundadora e Editora-chefe
lucidas.cc
@lucidas.cc